Voltando para a casa dos pais
Assim que consegui fugir da relação abusiva que me correu por dentro e tem efeitos até hoje, me deparei com uma realidade que até então não havia vivenciado uma vez que sempre trabalhei desde muito jovem.
Estava desempregada com mais de 30 anos e com experiência e currículo voltado apenas para um único ramo de atividade. Atividade essa que me deixou fortes marcas e gatilhos em decorrência da ralação tóxica e também da perda do meu filho.
Eu tinha que ter feito repouso absoluto durante a gestação, mas não fiz e o meu trabalho exigia presença em campo. Subia escadas, descia, dirigia longas distâncias entre municípios… Isso me consome e me enche de culpas até hoje.
Eu estava sem norte sobre o que eu queria fazer, mas uma coisa era certa. Eu estava determinada a nunca mais trabalhar com absolutamente nada que constava em meu currículo.
Mudando de carreira após os 30
Foram cerca de 14 anos de atividade na iniciativa privada em um único ramo, que eu decidi apagar completamente da minha vida.
Eu queria começar do zero em qualquer outra atividade que não me fizesse lembrar de tudo o que perdi. Contudo não seria uma tarefa fácil. O meu currículo não iria servir e eu já passava dos 30 anos. Como começar em alguma atividade nova e ser remunerada já não tendo mais 20 anos?
Eu tinha inúmeras dívidas feitas pelo meu ex assim como também um oficial de justiça batendo na porta dos meus pais em decorrência de uma grande dívida que ele havia feito em meu nome em um Banco.
Além disso o meu telefone não parava de tocar com empresas de cobrança me empurrando cada vez mais para o precipício.
Passei a enviar novos currículos tentando direcionar a mudança de carreira. Falava da minha experiência, mas sempre deixava claro o interesse em mudar de carreira. Contudo absolutamente nada acontecia. Eu não recebia nenhuma ligação. Tentei cargos menos complexos e nem assim fui convocada ao menos para entrevistas.
A casa dos pais
Logo que retornei para a casa dos meus pais eu trouxe poucas roupas e muitos livros. O meu antigo quarto já não existia mais. Então a solução foi dormir em um colchão inflável que servia para alguma visita inesperada.
As poucas roupas que eu tinha ficavam dentro de uma das malas e os meus livros em outra mala. A casa dos meus pais é simples, mas grande e com muitos quartos. Desse modo, ganhei um quarto só para mim.
Colchão inflável no chão, livros e roupas em malas e uma mente sem descanso. Os meus pensamentos oscilavam entre acabar com a minha vida, conseguir me livrar dos ovários policísticos e procurar um emprego para me erguer, mas o que eu mais conseguia fazer era chorar.
Aliás, ainda choro muito, mas sem o desespero dessa época.
Considerando concursos públicos como opção
Com toda a dificuldade para conseguir uma recolocação na iniciativa privada, decidi avaliar os concursos públicos. Entretanto essa medida deveria me dar algum retorno de médio a longo prazo. Todos nós sabemos que concurso público é muito concorrido. Ainda que sejam cargos simples, são sempre muito concorridos.
Analisando as oportunidades de concursos que estavam em aberto, observei um que oferecia 3 vagas para nível médio em um órgão relativamente perto da residência dos meus pais.
Eram cargos bem básicos. Exatamente o que eu estava procurando: Ocupar a minha mente com atividades corriqueiras sem grandes responsabilidades e sem gerar mais estresse para suportar. Eu estava a ponto de explodir de tanto pensar em meu fracasso na vida.
Estratégia de estudo para a aprovação
Realizei a minha inscrição e organizei o meu local de estudos. Aquela seria a minha única chance. Eu agarrei aquela oportunidade como quem agarra uma tábua quando precisa sobreviver em um oceano.
Um conteúdo extremamente básico, mas eu estudei como se fosse uma astronauta. Eram 12 horas de estudo ou mais por dia e as vezes esquecia de parar para me alimentar. Eu não tinha folga nem aos domingos. Mantive uma rotina regrada que, aliás, me ajudou ao menos naquele momento a não pensar tanto na minha vida.
Entretanto as primeiras semanas foram muito difíceis pois eu não conhecia os assuntos. Boa parte do conteúdo era novidade para mim e tudo parecia muito confuso a cada frase que eu lia. O que eu fiz foi insistir. Mesmo não entendendo nada de leis inicialmente, eu insisti.
Nem que fosse apenas um parágrafo, em um dia eu ja saberia mais do que o dia anterior. Não iniciei estudando 12h seguidas. Fui aos poucos pois precisava antes de tudo começar a ter alguma familiaridade com as palavras que lia e aí consequentemente a vontade de entender mais foi surgindo.
Resolvi exercícios de provas da OAB, concurso para delegado, juiz de direito… Parava os estudos a noite e ia para a academia. Afinal eu tinha recebido o diagnóstico de Ovários Policísticos e precisava lutar contra isso também.
Sem ter experiência nenhuma com concursos públicos, a minha estratégia para estudar para esse concurso foi:
- Estudar o edital;
- Saber exatamente o que seria cobrado e o peso de cada matéria;
- Criar um calendário de estudos com os dias e tempo de estudo para cada matéria considerando o peso das notas;
- Separar o material que iria utilizar;
- Buscar vídeos na internet sobre o conteúdo(são muitos);
- Resolver questões de provas sempre que concluía um assunto e
- Elaborar Mapas Mentais sobre o que havia aprendido daquele assunto. Os mapas ficavam colados nas paredes. Eram muitos.
Assim como a Arte, os Mapas Mentais também salvam.
Eu estava cheia de credores, minhas economias serviam para o básico, mas lembro que no dia da prova eu estava muito calma. Imaginei que seria o contrário, mas eu estava tomada por uma paz inexplicável.
O resultado final
A ansiedade bateu no dia em que saiu o resultado. Senti muito medo de fracassar mais uma vez na vida. Aquela era a minha chance de voltar a ter o mínimo de dignidade. Enfim abro a listagem com os resultados e está lá o meu nome entre as 3 únicas vagas disponíveis para aquele cargo. Acredite, o salário era 12 vezes menor do que a minha ultima remuneração, mas a alegria que eu senti em ver o meu nome naquela lista não tem tamanho.
Fui nomeada e tomei posse. Pronto, agora voltaria a viver outros ares. Finalmente a minha vida sairia de dentro daquele quarto e eu começaria a encarar os meu problemas financeiros reais de frente.
Durante todo esse período ainda recebia ligações do meu ex. Brigávamos freneticamente. Cheguei a bloquear seus números, mas eu ainda estava presa na teia e cobrar as dívidas era uma forma de manter contato mesmo que fosse para brigar. Era uma doença.
Início da escalada
Lembro perfeitamente quando percebi que estava livre da prisão desse relacionamento. Era noite de abertura dos Jogos Olímpicos de 2016. Eu assistia a transmissão na sala com os meus pais e aqui eu preciso destacar que, mesmo com as nossas diferenças, ter os meus pais nesse momento difícil foi um grande privilégio.
O meu celular tocou durante a transmissão dos Jogos e era o meu ex. Atendi e ele estava chorando falando que precisava conversar comigo. Quem já viveu um relacionamento abusivo sabe como o abusador costuma atuar. Quando eles sentem que estão perdendo, prontamente entram no modo de sobrevivência mais covarde que existe.
Eu acompanhava a abertura dos jogos pela TV e também através de uma rede social onde a todo momento surgiam memes muito divertidos que me faziam rir sem parar. Aquela ligação atrapalhou aquele momento e eu respondi como nunca tinha respondido: “Estou ocupada, não posso falar”.
Eu sempre queria falar com ele mesmo que fosse para brigar. Mas naquele momento eu percebi que tinha conseguido me soltar daquela teia. Foi a ultima vez que nos falamos por telefone.
Voltando a trabalhar como servidora pública e sem sentir mais a necessidade de falar com o ex abusador e tóxico, eu já não estava mais no fundo do poço mais fundo. Tinha conseguido escalar alguns centímetros acima.