O filho planejado
Ser mãe era um dos meus maiores sonhos. Gostaria muito de formar uma família e ter filhos. Absolutamente todas as minhas amigas da infância concretizaram isso, menos eu.
Talvez esse sonho tenha sido genuíno ou somente um reflexo da forma como somos direcionadas na vida, mas foi a busca desenfreada por essa realização que me levou ao maior fracasso da minha vida como mulher e como profissional.
A minha gravidez foi planejada como tudo em minha vida até então. Desse modo, tudo foi calculado inclusive o período de ovulação. Eu acreditava que tinha conhecido alguém com os mesmos objetivos que eu, no entanto era um narcisista sem escrúpulos nenhum.
A minha menstruarão era super correta. Nunca falhou, então foi fácil calcular tudo. Não teve erro. Assim que a minha menstruação atrasou, eu já sabia que estava grávida. Fiz o exame de sangue e recebi o resultado com uma alegria que não cabia em mim.
O pai também comemorou muito, afinal ele planejou tudo junto comigo. Eu só não sabia que ele também estava planejando me transformar em uma vítima de relacionamento abusivo.
Eles nunca se apresentam de cara. É importante que isso seja dito sempre.
Nós morávamos em estados diferentes e rapidamente ele encontrou o motivo para me tirar a paz que toda mulher grávida precisa ter. Ele queria que eu largasse tudo e fosse embora imediatamente. Eu tinha uma vida e uma carreira na cidade em que morava. Após diversas brigas e ter um sangramento logo no início da gravidez decidi ceder aos apelos que ele fazia.
A trágica notícia
Mesmo com a ordem do repouso absoluto eu precisava trabalhar e o meu trabalho na época exigia muito de mim fisicamente. Fazia os meus exames regularmente e tudo ia bem com o meu filho até que em um exame de Ultrassonografia ficou constatado que não havia mais batimentos cardíacos.
Eu tenho todas as documentações e inclusive a US com o resultado até hoje.
Foi um choque. A primeira orientação foi aguardar o meu corpo expelir o bebê sozinho, mas isso não aconteceu.
Conduta médica
Mais de uma semana após o resultado da US, eu ainda estava com ele morto dentro de mim. Havia riscos de várias complicações e inclusive infecções. Então o médico me deu 2 alternativas: curetagem ou tomar um medicamento para “induzir o parto”.
Escolhi a segunda opção pois sempre tive muito medo de curetagem. A segunda opção envolvia tomar um medicamento para fazer a profilaxia durante uns dias e logo depois tomar o outro comprimido, aquele que todos conhecem, para induzir o parto.
O médico alertou que poderia ter dificuldades para adquirir o medicamento uma vez que ele é de uso muito restrito, mas garantiu que com a receita médica eu conseguiria. Ele estava enganado.
Inicialmente sofri ao tentar adquirir o comprimido. Mesmo com a receita médica saí chorando de 3 farmácias que recusaram atendimento e em uma delas eu ouvi: “Isso é crime!”
Aquela mulher acabou comigo. Eu ainda falei chorando que o meu filho estava morto e aquela era uma receita médica, mas não teve acordo.
Até hoje me pergunto se foi realmente necessário passar por isso. Imagino que existam outras formas menos constrangedoras e traumáticas.
Aqui preciso destacar que a minha médica de sempre não concordou com a conduta do colega que me atendeu e conduziu a situação lá onde eu morava.
Eu estava sozinha em outro estado e ia realizar um procedimento que pode gerar riscos sem suporte algum.
Uma conhecida conseguiu comprar o tal medicamento em uma farmácia no centro da cidade. Lembro que era noite de uma sexta-feira.
Os detalhes daquela madrugada
Liguei para a minha mãe para saber como as coisas estavam. Eu sempre poupei os meus pais dos detalhes das violências que vivi. Eles estavam de saída para uma festa de aniversário e eu garanti que estava tudo bem comigo, mas não estava. Eu estava prestes a começar o processo mais doloroso da minha vida em todos os aspectos.
Tomei o comprimido às 19h e as dores começaram às 21h. Parecia que o meu corpo estava abrindo ao meio de tanta dor e tristeza. Eu sabia que dali sairia morto a coisa que eu mais queria na vida. Vomitei, saiam pedaços enormes de dentro de mim, sujei tudo de sangue, tive diarreia… Estiquei a mão e consegui tocar em alguns pedaços. Ainda lembro de sentir texturas secas e enrugadas. O processo todo durou quase 10 horas e logo depois de expelir o meu filho morto eu precisei limpar tudo o que sujei.
Às 7h o dia já estava claro eu estava jogada na cama sem forças para ficar em pé.
Passei o final de semana inteiro deitada chorando e é claro que quem deveria estar ao meu lado apoiando, reclamou do meu choro. Naquela noite havia um jogo de futebol com Neymar e ele foi assistir enquanto eu “paria” o nosso filho morto.
Como se nada tivesse acontecido
Segunda-feira as 7h eu já havia descido 4 lances de escada e estava a caminho do trabalho. Usava 2 absorventes e trocava várias vezes durante o dia. Permaneci sangrando por 11 dias.
Voltei imediatamente ao trabalho, afinal de contas quem liga para uma mulher que acabou de sofrer um aborto? É mais importante e necessário para todos produzir e cumprir com os compromissos do mundo corporativo.
Não havia um corpo que justificasse uma pausa. Não havia nada que simbolizasse um fim. Existia apenas uma mulher que não tinha mais uma barriga de grávida, assim como também não existia um filho para amamentar. Eu estava morta por todos os lados, mas aquilo só foi concreto para mim.
Jamais fui considerada mãe em diálogo algum até por amigos. A mulher que sofre um aborto de um filho tão desejado vive uma solidão inexplicável.
Não tive direito ao luto. Eu não recebi nenhum abraço. Não tive o colo que eu precisava tanto. Logo em seguida mergulhei de cabeça no trabalho. Eu passei a levar demandas para casa e trabalhava de domingo a domingo. Tive a sensação das exigências terem aumentado após isso. Eu precisava dar cada vez mais resultados. Viajava a trabalho dirigindo por mais de 400km. Comia em frente a mesa de trabalho e foi aí que passei a engordar.
A gravidez não foi o motivo pelo qual engordei quase 40kg, mas sim o desengano, o abandono, a depressão, a tristeza profunda e a falta completa de apoio. Eu estava só na minha dor e ocupando a mente com um trabalho que exigia muita responsabilidade.
Logo em seguida precisei voltar para minha cidade natal fugindo de um relacionamento abusivo e precisei buscar formas para me sustentar o mais rápido possível. “Foi melhor assim” Essa foi a frase que me apeguei para tentar suportar. Com o meu filho vivo, aquele pai estaria me perseguindo até hoje.
Agora eu entendo que o meu sofrimento profundo por essa perda não se encerrou pois não tive direito ao luto. Tudo que não consegui chorar naquele período eu choro hoje. Choro aparentemente sem motivo algum. As vezes quero voltar para casa apenas para chorar. Já se passaram 10 anos e é assim que sobrevivo.
A necessidade de atender as demandas da vida juntamente com o sofrimento que vivi foram somando para um esgotamento mental que dura até hoje.
Dessa forma, atualmente eu procuro caminhar lentamente tentando parar de me culpar tanto e procurando me perdoar mais.